Sunday, January 17, 2010

Tinta a transbordar

Tenho tantas tintas que elas transbordam das telas....foi esta a ideia que presidiu à criação dum novo quadro.
"Estás a mentir", diria o meu neto, com um sorriso....ou "Estás a ser irónica", como já disse uma vez à Mãe, quando ela comentou que tinha três filhos rapazes e que "era uma alegria".

Gravei há tempos uma fotografia de que gostei bastante, em que se usava o photoshop para conseguir um efeito especial. Resolvi transformá-la numa tela. Não sei se o efeito é o mesmo, mas que ficou especial, lá isso ficou!!



E como não sei fazer poemas, transcrevo aqui um longo, mas belo de Fernanda de Castro:

Não fora o mar,
e eu seria feliz na minha rua,
neste primeiro andar da minha casa
a ver, de dia, o sol, de noite a lua,
calada, quieta, sem um golpe de asa.

Não fora o mar,
e seriam contados os meus passos,
tantos para viver, para morrer,
tantos os movimentos dos meus braços,
pequena angústia, pequeno prazer.

Não fora o mar,
e os seus sonhos seriam sem violência
como irisadas bolas de sabão,
efémero cristal, branca aparência,
e o resto — pingos de água em minha mão.

Não fora o mar,
e este cruel desejo de aventura
seria vaga música ao sol pôr
nem sequer brasa viva, queimadura,
pouco mais que o perfume duma flor.

Não fora o mar
e o longo apelo, o canto da sereia,
apenas ilusão, miragem,
breve canção, passo breve na areia,
desejo balbuciante de viagem.

Não fora o mar
e, resignada, em vez de olhar os astros
tudo o que é alto, inacessível, fundo,
cimos, castelos, torres, nuvens, mastros,
iria de olhos baixos pelo mundo.

Não fora o mar
e o meu canto seria flor e mel,
asa de borboleta, rouxinol,
e não rude halali, garra cruel,
Águia Real que desafia o sol.

Não fora o mar
e este potro selvagem, sem arção,
crinas ao vento, com arreio,
meu altivo, indomável coração,

Não fora o mar
e comeria à mão,
não fora o mar
e aceitaria o freio.


Fernanda de Castro, in "Trinta e Nove Poemas"