Hoje resolvi sair um pouco do âmbito da cultura para me debruçar sobre o social.
Vejo no Telejornal da hora de almoço os últimos números da adesão à greve - abaixo das expectativas, pois claro, quem é que pode perder o vencimento dum dia de trabalho, mesmo que ele seja baixo e oferecer ao Estado uma percentagem daquilo que ele lhe paga quase por favor? Enquanto professora só fiz greve uma vez e por solidariedade pois nem sequer estava convocada para os exames desses dias. Mesmo assim tiraram-me cerca de 200 euros no vencimento ao fim do mês. E greves de professores não têm consequências nenhumas, só servem para os alunos se divertirem e andarem pelos shoppings a passear...
Outra notícia que despertou a minha atenção, foi a de que muitos sem-abrigo pernoitam na gare do Oriente, aquele monstro de betão com espaço que daria para fazer dez casas ou mais onde abrigar estas pessoas que o azar atirou para as ruas. Não é só cá. Lembro-me de ver sem abrigos em Londres, em NY, em Paris, com climas gélidos. Passei duas noites em gares, por viajar de noite em grupo e sei quanto custa não termos onde encostar a cabeça e esticar as pernas. E eu tinha 19 anos. Vieram-me as lágrimas aos olhos ao ver os jovens a entregar refeições na estação, o modo como abraçavam os necessitados, o carinho com que os tratavam. Ainda bem que há gente generosa. Um dos homens que ali estava, com bom aspecto físico e sapatos engraxados, explicou que é epilético e que não há patrões que o admitam. Ou seja, despedem-no mal sabem que ele sofre de epilepsia. Tive uma estagiária que sofria dessa doença e sempre deu aulas, embora, pessoalmente tenha tido muitas complicações durante a vida. As doenças mentais são a maior razão de ostracismo e de miséria. Não há qualquer protecção social para quem sofre destas doenças, nem sequer podem fazer seguros de doença. Sei-o bem.
Este país não é para velhos, nem para deficientes, nem doentes, nem sequer para jovens licenciados, casais novos com crianças, este país não é para quase ninguém....
Quando dava aulas de Inglês no 11º Ano, nas décadas após o 25 de Abril, os programas eram muito virados para os problemas sociais e extremamente limitados em termos culturais. Basta dizer que os 4 temas principais a tratar nesse ano eram: a Revolução Industrial na GB; condições de trabalho; desemprego; imigração. No fundo tudo se resumia ao mesmo tema : trabalho; trabalho; trabalho. Fiz muitas pesquisas nesse campo, comprei livros e livros sobre os temas principais - romances como os de Alan Sillitoe, que faleceu recentemente, vi filmes que pudessem interessar aos meus alunos, como o Brassed Off ( não me lembro do nome em português, desculpem), um filme muito interessante sobre as minas do Yorkshire e uma banda de mineiros que toca na penúria até ficarem desempregados por ordem de Margaret Thatcher. Também lia a TIME, que trazia artigos actuais sobre as crianças dos países asiáticos e africanos que trabalhavam de sol a sol. Lembro-me de levar para as aulas fotos de crianças das fábricas de tecelagem, limpa-chaminés de seis e sete anos, meninos que acartavam tijolos debaixo de sol tórrido, umas carinhas lindas e olhos expressivos... Os meus alunos eram jovens bem nutridos, despreocupados e felizes, com os problemas fúteis da adolescência, o desgosto de não terem jeans de marca ou ténis NIKE ou arrufos de namorados. Devo acrescentar a este meu texto de hoje que sempre achei que os jovens de 14 a 16 anos deviam trabalhar nos tempos livres, mesmo que não ganhassem nada, pois o trabalho é uma experiência e às vezes torna-se mais útil do que muito estudo e leitura. No Reino Unido e nos EUA, todos os alunos têm part-time jobs, holiday jobs, weekend jobs e isso entra no seu currículo.Eu própria monitorizei um grupo de alunos num Work Experience em Northampton e eles gostaram muito. Aqui em Portugal, grande parte dos jovens acha-se com direito a tudo, bolsas do Estado, livros de graça, universidade à borla, tudo pago pelos Pais. Nunca sentiram na pele a necessidade de custear as suas despesas de educação.Não são todos, graças a Deus. Para essas aulas a minha filha gravou em tempos um poema lindíssimo de William Blake: The chimney sweeper. Fê-lo para uma cassete e não em CD, de modo que não o posso colocar aqui. Em fundo pôs música de Ennio Morricone. Cada vez que os meus alunos ouviam aquela gravação, ficavam petrificados e comovidos. Eu também.
Oiçam esta versão maravilhosa que encontrei no You Tube:
When my mother died I was very young, And my father sold me while yet my tongue Could scarcely cry 'weep! 'weep! 'weep! 'weep! So your chimneys I sweep, and in soot I sleep.
There's little Tom Dacre, who cried when his head, That curled like a lamb's back, was shaved: so I said, "Hush, Tom! never mind it, for when your head's bare, You know that the soot cannot spoil your white hair."
And so he was quiet; and that very night, As Tom was a-sleeping, he had such a sight, - That thousands of sweepers, Dick, Joe, Ned, and Jack, Were all of them locked up in coffins of black.
And by came an angel who had a bright key, And he opened the coffins and set them all free; Then down a green plain leaping, laughing, they run, And wash in a river, and shine in the sun.
Then naked and white, all their bags left behind, They rise upon clouds and sport in the wind; And the angel told Tom, if he'd be a good boy, He'd have God for his father, and never want joy.
And so Tom awoke; and we rose in the dark, And got with our bags and our brushes to work. Though the morning was cold, Tom was happy and warm; So if all do their duty they need not fear harm.
William Blake » Songs of Innocence-The Chimney Sweeper
Tradução:
O LIMPADOR DE CHAMINÉS
Tradução ( brasileira) de Renatta Suttana
Eu era bem novo, e minha mãe morria; e meu pai vendeu-me quando eu mal sabia balbuciar, chorando: “’dor! ‘dor! ‘dor! ‘dor! ‘dor!” Assim, sujo e escuro, sou o limpador. Aquele é Tom Dracre, que chorou na vez em que lhe rasparam a cabeça: “Vês – consolei-o – Tom, que é bom não ter cabelo, pois assim fuligem não te suja o pêlo.” Assim se acalmou, e numa noite escura Tom, dormindo, teve esta visão futura: que mil limpadores – josés e joões – foram confinados em negros caixões. E então veio um Anjo, com uma chave branca, e os tirou do escuro, destravando a tranca; e então, entre risos, ao campo saíram, no rio lavaram-se, e ao sol reluziram. Sem sacos às costas, despida a camisa, voaram nas nuvens, brincaram na brisa; disse o Anjo a Tom que, se fosse bonzinho, Deus feliz tomava-o como seu filhinho. E, após, despertando, foi na escuridão apanhar seu saco mais seu esfregão, e saiu alegre na manhã gelada. Quem seu dever cumpre não receia nada.
Não gosto de ser demagógica, mas tinha de fazer sentir o problema aos meus alunos, embora a minha missão fosse ensinar-lhes inglês, afinal....e somente.