Wednesday, February 23, 2011

A efemeridade da vida

Corria o mês do calor, um calor abafado e sufocante que ao início da manhã era recebido com entusiasmo mas que a partir da hora do almoço dos impedia de sair à rua. Só à noite nos era restituída a liberdade e, qual 25 de Abril, corríamos para a rua de cravo na mão (no meu caso era mais com o saco dos berlindes) e era a desforra até altas horas da madrugada.
Numa destas noites de convívio correu por toda a aldeia, como um rastilho de pólvora, a notícia de que ela tinha partido.
Surgiram de início rumores, especulações, notícias não confirmadas e, finalmente, certezas. Ela tinha realmente partido.
Fui interiormente procurar entender o significado deste acontecimento. Não o entendia, não era suposto entendê-lo. Não tinha maturidade para perceber que aquela pessoa que conhecia tão bem tinha permanentemente partido. Rebobinei filmes, imagens, acontecimentos em comum e nada parecia realmente importante quando confrontado com este desfecho. Nem o seu belo sorriso, a sua pele clara, a sua gargalhada franca me marcaram tanto como o dia em que tive de lhe dizer adeus.
Nós também não éramos amigas do peito, daquelas com quem se partilham todos os segredos.  Apesar de morarmos na mesma aldeia, havia entre nós uma barreira enorme que nos distanciava anos-luz: eu andava na quarta classe e ela andava no ciclo. O ciclo, esse novo mundo que alguns já tinham experimentado mas que, para mim, era algo misterioso. E quem lá andava era "muito à frente". Não me atrevia a comunicar com essas pessoas, sob pena de fazer figura triste, limitava-me a cumprimentá-las e sonhava com o dia em que iria fazer parte daquele mundo.
Na noite da confirmação não consegui dormir. Deitei-me na sacada porque o aperto no peito não me deixava respirar. Qualquer movimento de pessoas ou animais na rua trazia-me de volta à realidade e ficava eufórica por constatar que ainda estava viva. Acreditava que iria adormecer e nunca mais iria acordar e lutava com o sono e o cansaço. Acabei por adormecer no regaço da minha mãe, com garantias de que amanhã seria um novo dia...
E nasceu um novo dia, mas o meu mundo não voltou a ser igual. Fui confrontada com a efemeridade da vida quando a vida ainda não me tinha mostrado todas as suas potencialidades. E cedo comecei a questionar se valia a pena a luta diária que travamos. Hoje sei que vale a pena.
Ficará para sempre a memória da menina que partiu cedo demais...
RIP S.